Gumercindo Saraiva e os seus comandantes, 1894 |
"A Quem matam chamam bandido
A Quem morre chamam herói" - A. Silva Rillo
Foi uma cena tenebrosa o que as tropas do chefe republicano Firmino de Paula cometeram. Descoberta a sepultura do caudilho federalista Gumercindo Saraiva, no cemitério do capuchinhos de Santo Antônio, dois dias depois de sua morte, ocorrida no Caroví em 10 de agosto de 1894 (no estado do Rio Grande do Sul), ordenaram sua profanação. Os seus restos mortais, dizem que amarrados numa estaca ou numa cruz improvisada, foram então expostos no portal do cemitério enquanto que os cavalarianos tiveram ordens de desfilar em frente aos despojos já carcomidos do inimigo. Ali estava "o bandido do Gumercindo", a quem as forças governistas perseguiam sem descanso há dezessete meses.
Muitos dos republicanos não resistiram ao ódio que os consumia e cuspiram sobre aquela massa amorfa de carne putrefata e pó. Ninguém como ele havia tanto atazanado o governo de Júlio de Castilhos (iniciado em 1891). Pinheiro Machado, um dos seus mais denodados inimigos, Senador pelo Rio Grande do Sul, ao vê-lo morto, teria dito: "Parece mentira que esse trompeta chegou a estremecer a República!" Criado, desde que nascera em 1852, numa fazenda uruguaia, no departamento de Cerro Largo, filho de um ilustre clã de oligarcas do Partido Blanco, vivendo naquela verdadeira terra de ninguém que era a fronteira uruguaia-brasileira de então, Gumercindo Saraiva soube, como nenhum outro caudilho daqueles tempos, levar os gaúchos à batalha, fazê-los travar "a guerra bárbara".
Acampamento da guerrilha dos irmãos Saraiva, 1894 |
Além disso, o espaço para travar a guerra encurtara. Os caudilhos não dispunham mais da imensa liberdade de ação de antanho, dos tempos das guerras farrapas ou dos tão comuns entreveros de fronteira. O telégrafo e as estradas de ferro, que começaram a dominar a região da campanha, fizeram com que os exércitos dos rebeldes rapidamente pudessem ser localizados e contra eles fossem lançadas as forças repressivas do governo. Gumercindo Saraiva, em vista disso, decidiu-se dispersar os seus 400 homens, chamados depois de maragatos (apelidos que os republicanos governistas deram as rebeldes), transformando-os em pequenos corpos de combate. Fez deles, gente de "bota e potro", uma infernal guerrilha montada, com ordem de proverem-se de cavalgaduras e de armas de fogo nos arsenais do governo: de D. Pedrito a Cachoeira, de Encruzilhada a Quaraí. A gente do Gumercindo estava ao mesmo tempo em todos os lugares e em nenhum.
No ano e meio em que perseguiram-no, várias vezes as autoridades asseguraram, com golpes de telegramas, que ele havia sido morto num lugar qualquer. Mas o Gumercindo parecia renascer numa outra coxilha, em outro descampado qualquer, e a luta prosseguia. Sua maior façanha militar foi a intempestiva ofensiva em direção ao Norte, à Capital Federal, ao Rio de Janeiro, que liderou contra o governo do Presidente Floriano Peixoto. Desejava, depois de contatar com os insurgentes da Marinha em Santa Catarina, chegar ao Rio de Janeiro e pessoalmente apear a quem via como símbolo da tirania militar-positivista que desgraçava a vida do país. Desiludiu-se porém com a falta de apoio popular, o que o levou a concluir que "o povo brasileiro é indiferente, só luta quando o maltratam fisicamente".
Mas também pode-se entender que as forças políticas que Gumercindo representava ou lhe davam apoio (grandes fazendeiros do ex-partido monarquista, almirantes rebelados desde 1892 contra a República), não entusiasmavam o povo miúdo das cidades ou vilarejos por onde suas tropas passavam. O que também mereceu dele acerbas criticas às populações urbanas: "As cidades" assegurou ele "corrompem as pessoas" ...lá "só cuidam de si mesmos".
Retirando-se da cidadezinha de Lapa, no Paraná, Gumercindo retrocedeu para o sul. Em 70 dias, depois que chegou de volta ao Rio Grande do Sul, recorrendo ao trem de ferro e aos cavalos, atravessando rios e densos matagais, fez uma espantosa retirada de uns 600 quilômetros (no total ele percorreu 3 mil quilômetros a cavalo)! Antecipou deste modo a tão famosa Coluna Prestes (1924-27). Atrás dele, como um vespeiro furioso, na tentativa de capturá-lo, dispararam todos os chefes republicanos. Alcançaram-no e prostraram-no finalmente, meio no acaso, com dois tiros de espingarda que lhe dilaceraram os pulmões, no Arroio de Nhã Capetum, bem no interior do Estado do Rio Grande do Sul.
Gumercindo Saraiva (1852-1894), caudilho federalista |
Gravuras: Crônica de Aparicio Saravia, do prof.W.Reyes Abadie, Montevidéu
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