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terça-feira, 16 de outubro de 2012

A CABEÇA CORTADA DE GUMERCINDO





A cabeça cortada de Gumercindo Saraiva


Gumercindo Saraiva e os seus comandantes, 1894
"A Quem matam chamam bandido
A Quem morre chamam herói"
- A. Silva Rillo

Uma cena tenebrosa

Foi uma cena tenebrosa o que as tropas do chefe republicano Firmino de Paula cometeram. Descoberta a sepultura do caudilho federalista Gumercindo Saraiva, no cemitério do capuchinhos de Santo Antônio, dois dias depois de sua morte, ocorrida no Caroví em 10 de agosto de 1894 (no estado do Rio Grande do Sul), ordenaram sua profanação. Os seus restos mortais, dizem que amarrados numa estaca ou numa cruz improvisada, foram então expostos no portal do cemitério enquanto que os cavalarianos tiveram ordens de desfilar em frente aos despojos já carcomidos do inimigo. Ali estava "o bandido do Gumercindo", a quem as forças governistas perseguiam sem descanso há dezessete meses.

Muitos dos republicanos não resistiram ao ódio que os consumia e cuspiram sobre aquela massa amorfa de carne putrefata e pó. Ninguém como ele havia tanto atazanado o governo de Júlio de Castilhos (iniciado em 1891). Pinheiro Machado, um dos seus mais denodados inimigos, Senador pelo Rio Grande do Sul, ao vê-lo morto, teria dito: "Parece mentira que esse trompeta chegou a estremecer a República!" Criado, desde que nascera em 1852, numa fazenda uruguaia, no departamento de Cerro Largo, filho de um ilustre clã de oligarcas do Partido Blanco, vivendo naquela verdadeira terra de ninguém que era a fronteira uruguaia-brasileira de então, Gumercindo Saraiva soube, como nenhum outro caudilho daqueles tempos, levar os gaúchos à batalha, fazê-los travar "a guerra bárbara".
A guerrilha a cavalo


Acampamento da guerrilha dos irmãos Saraiva, 1894
Gumercindo foi uma espécie de Martin Güemes redivivo, o saltenho que por primeiro conseguiu, durante as guerras da independência da Argentina, de 1815-1820, fazer com que os gaúchos pampeanos deixassem de ser tratados como a plebe rural, como bandoleiros, para torná-los respeitáveis combatente, ao criar o regimento dos "Dragões Infernais". Desde a primeira grande batalha que os federalistas, ao lado de quem Gumercindo viera lutar - desde que entrara em território brasileiro por Aceguá -, travaram com os republicanos em Inhanduí, nas alturas do Alegrete, em maio de 1893, ele percebeu que a guerra montonera deveria ser modificada. De nada adiantavam heróicas cargas de cavalaria, a maioria delas com lanças e facões, contra pelotões disciplinados de atiradores equipados com carabinas de repetição, com metralha e peças de artilharia, como as que contavam as tropas do governo gaúcho, reforçadas pelos regimentos do exército federal.

Além disso, o espaço para travar a guerra encurtara. Os caudilhos não dispunham mais da imensa liberdade de ação de antanho, dos tempos das guerras farrapas ou dos tão comuns entreveros de fronteira. O telégrafo e as estradas de ferro, que começaram a dominar a região da campanha, fizeram com que os exércitos dos rebeldes rapidamente pudessem ser localizados e contra eles fossem lançadas as forças repressivas do governo. Gumercindo Saraiva, em vista disso, decidiu-se dispersar os seus 400 homens, chamados depois de maragatos (apelidos que os republicanos governistas deram as rebeldes), transformando-os em pequenos corpos de combate. Fez deles, gente de "bota e potro", uma infernal guerrilha montada, com ordem de proverem-se de cavalgaduras e de armas de fogo nos arsenais do governo: de D. Pedrito a Cachoeira, de Encruzilhada a Quaraí. A gente do Gumercindo estava ao mesmo tempo em todos os lugares e em nenhum.

A marcha de Gumercindo

No ano e meio em que perseguiram-no, várias vezes as autoridades asseguraram, com golpes de telegramas, que ele havia sido morto num lugar qualquer. Mas o Gumercindo parecia renascer numa outra coxilha, em outro descampado qualquer, e a luta prosseguia. Sua maior façanha militar foi a intempestiva ofensiva em direção ao Norte, à Capital Federal, ao Rio de Janeiro, que liderou contra o governo do Presidente Floriano Peixoto. Desejava, depois de contatar com os insurgentes da Marinha em Santa Catarina, chegar ao Rio de Janeiro e pessoalmente apear a quem via como símbolo da tirania militar-positivista que desgraçava a vida do país. Desiludiu-se porém com a falta de apoio popular, o que o levou a concluir que "o povo brasileiro é indiferente, só luta quando o maltratam fisicamente".

Mas também pode-se entender que as forças políticas que Gumercindo representava ou lhe davam apoio (grandes fazendeiros do ex-partido monarquista, almirantes rebelados desde 1892 contra a República), não entusiasmavam o povo miúdo das cidades ou vilarejos por onde suas tropas passavam. O que também mereceu dele acerbas criticas às populações urbanas: "As cidades" assegurou ele "corrompem as pessoas" ...lá "só cuidam de si mesmos".

Retirando-se da cidadezinha de Lapa, no Paraná, Gumercindo retrocedeu para o sul. Em 70 dias, depois que chegou de volta ao Rio Grande do Sul, recorrendo ao trem de ferro e aos cavalos, atravessando rios e densos matagais, fez uma espantosa retirada de uns 600 quilômetros (no total ele percorreu 3 mil quilômetros a cavalo)! Antecipou deste modo a tão famosa Coluna Prestes (1924-27). Atrás dele, como um vespeiro furioso, na tentativa de capturá-lo, dispararam todos os chefes republicanos. Alcançaram-no e prostraram-no finalmente, meio no acaso, com dois tiros de espingarda que lhe dilaceraram os pulmões, no Arroio de Nhã Capetum, bem no interior do Estado do Rio Grande do Sul.
A morte de Gumercindo


Gumercindo Saraiva (1852-1894), caudilho federalista
O seu irmão mais novo, o belicoso Aparício Saraiva, carregou-o gravemente ferido mundo. Foi lá que uma coluna dos perseguidores, pertencente à Divisão Norte, o encontrou, sepultado como defunto ainda fresco. Depois de terem feito o diabo com o cadáver, deceparam-lhe a cabeça (a pretexto de atender à ciência frenológica). Um oficial, o major Ramiro Oliveira da Brigada Militar, a força pública gaúcha, recebeu ordens, provavelmente do coronel republicano Firmino de Paula, de levá-la numa caixa de chapéus como um troféu para o governador do estado em Porto Alegre. Júlio de Castilhos, horrorizado com aquele gesto bárbaro, proibiu o oficial de aproximar-se do Palácio do Governador. Acreditavam entregar depois a cabeça de Gumercindo à "estudo minucioso em proveito da ciência" para, talvez, poder encontrar nas saliências do seu crânio, os mistérios da alma amotinada de um Rio Grande do Sul que desaparecia com ele (ver "Ata do recolhimento do crânio de Gumercindo Saraiva", 8 de outubro de 1894). O major Ramiro disse que de volta à Santa Maria encontraria no caminho um lugar qualquer para lançar a cabeça do guerrilheiro num rio. O restante do corpo de Gumercindo somente foi devolvido à família Saraiva muitos anos depois da desgraçada matança de 1893-95, quando os ânimos estavam pacificados e os velhos ódios haviam desaparecido.
Gravuras: Crônica de Aparicio Saravia, do prof.W.Reyes Abadie, Montevidéu


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