Revista Ícaro Brasil, julho/1997
textos de Carlos Moraes
fotos de Lalo de Almeida
Esta noite, mateando, os carreteiros falam pouco em volta do fogo.
Amanhã cedo estarão pelos bairros da cidade, carreta puxada só por uma
junta, vendendo o que o EI Nino permitiu que trouxessem desta vez,
batata, ovos, um pouco de charque.
Anos atrás eram uns 70, chegaram até a formar uma associação. Hoje
são, se tanto, a metade. Viajam sempre juntos, em grupos de quatro,
cinco. Bem menores que as antigas, essas carretas de duas rodas ainda
conservam o clássico estilo pampeano. o toldo é de zinco, mas já foi de
couro ou guinchado de santa-fé. Os bois são controlados carinhosamente
pelo próprio nome, Pintassilgo, Malacara, Parecido, ou vigorosamente
pela aguilhada, vara comprida com ponta de ferro. os homens dormem ao
relento, entre o poncho e os pelegos, sob a carreta. Duas figuras
obrigatórias nessas carreteadas: o cão, ou guaipeca, e o piá carreteiro,
o menino para os pequenos serviços, o grumete do navio. Em
tupi-guarani, piá tem um bonito significado. Quer dizer, ao mesmo
tempo, filho e coração.
Esses carreteiros ao redor do fogo sabem que, entre os 60 mil habitantes
de São Gabriel, contam com amigos e críticos, Para os críticos a
carreta de boi não passa de uma lenta obsolescência que insiste em
atrapalhar o trânsito. Entre os amigos, há pessoas ilustres. O
historidor Osório Figueiredo, autor de Carreteadas Heróicas, que
acompanha o tranco das carretas desde os vales do Eufrates até os pampas
de São Gabriel.
Um vereador, Idalino Soares, que há anos peleia por seus amigos, mas
reconhece que suas cansadas lavouras seculares estão a ponto de não mais
justificar essas carreteadas, já meio heróicas. Um jornalista
corajoso, Valdir Borin, que conviveu meses com os carreteiros e dessa
experiência saiu com emocionado vídeo. E ainda o já citado poeta
Edilberto Teixeira, recentemente falecido, autor de São Gabriel das
Carretas e O ABC da Carreta. Num dos seus mais belos poemas, ele fala
que a história é como o gemido da carreta que vai deixando um lamento de
saudade na memória dos velhos e uma ânsia de horizontes no coração dos
moços. Esse gemido das carretas estrada afora muito tem esporeado a
imaginação dos poetas.
Numa de suas músicas, o argentino Atahualpa Yupanqui canta que não
precisa de silêncio porque já não tem em que pensar, por isso os eixos
da sua carreta nunca vai engraxar. já para outro poeta gaúcho, Mozart
Pereira Soares, a função desse gemido foi ir acordando, mundo afora,
caminhos adormecidos.
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